Isabel Valença, a Rainha do povo que fez o Teatro Municipal se render ao morro

No ano de 1963 o Acadêmicos do Salgueiro fazia bela apresentação na Avenida Presidente Vargas com o enredo “Xica da Silva” de Arlindo Rodrigues.  O publico assistia atento o requinte plástico do carnavalesco, o bailado autentico da passista Paula do Salgueiro, que neste ano desfilou ao lado do lendário passista Monsueto (ele a cada ano escolhia uma escola para desfilar, 63 foi o ano do Salgueiro), o minueto dos casais comandados por Mercedes Baptista, que hipnotizou quem teve a oportunidade de estar naquele desfile. Um espetáculo, porém faltava ela, a Xica da Silva, personagem titulo do enredo.

E foi um acontecimento a aparição de Isabel Valença, na época primeira dama da escola. Ela tinha carisma e postura para personificar a ousada Xica. O encantamento com sua passagem foi tanto, que ninguém se lembra de Reginaldo Vaz, parceiro que veio ao seu lado representando o contratador de diamantes, João Fernandes.

Isabel já havia interpretado um destaque no ano anterior, porém a partir de 1963 se tornaria um mito no fantástico time de estrelas que o Salgueiro possuía. Isabel obteve a façanha de ser  campeã em desfile de fantasia do Teatro Municipal, ficando marcada como a mais perfeita Xica da Silva que já pisou o asfalto durante o Carnaval.

Zelia Hoffman foi a primeira escolha para viver Xica da Silva

A principio, Xica seria representada pela atriz Zélia Hoffman, famosa vencedora de concursos de fantasias do  Municipal. Mas, ao ver o figurino, desistiu, optando por fantasia mais leve.

Osmar Valença tinha pensado na atriz porque sua mulher, Isabel, primeiro destaque da escola, tinha feito obrigação para Iansã e Omulu, não podendo sair no carnaval. Devido à insistência de Arlindo Rodrigues, que junto com Fernando Pamplona montara o enredo, Isabel consultou seu pai-de-santo e este permitiu que fizesse nova obrigação, desta vez incluindo a Cabocla Jurema. Foi assim que Isabel passou a ser conhecida como “Xica da Silva”.

 

O enredo do Salgueiro para aquele ano de 1963 foi estimado na soma de 40 milhões e 200 mil cruzeiros. A fantasia de Xica da Silva usada por Isabel Valença ficou em 1 milhão e 300 mil cruzeiros, figurino de Arlindo Rodrigues e a peruca, criação de Paulo Carias, media cerca de 1 metro de altura, ornada em pérolas, como de resto toda a roupa, que tinha uma cauda de 7 metros de comprimento e anáguas com armação de aço, quando o normal era arame.

A sambista e a personagem se fundiram numa só lenda carnavalesca. Ao ponto de Isabel ser convidada para, vestida de Chica da Silva, participar da recepção a Lord Moutbatten, o bisneto da Rainha Vitória, que visitava o país.

Em 1964 ela quebrou tabus ao vencer o concurso de fantasias na categoria luxo feminino no Teatro Municipal, um palco muito distinto da passarela do samba, causando espanto e euforia. Os veteranos do concurso torceram o nariz de início e protestaram ao final, mas tiveram de engolir a façanha da moça do morro que se consagrou no asfalto e desbancou a todos no salão. Mas a vitória da mulata da escola de samba no Municipal, só foi possível por interferência do governador Carlos Lacerda, que anulou a decisão dos organizadores do concurso, que queriam impedir a sambista de competir naquele palco privilegiado. Neste que era o 28º Baile de Gala do Teatro Municipal do Rio, Isabel desfilou fantasiada de Rainha Rita de Vila Rica, do enredo “Chico Rei”. A vitória causou a revolta da atriz Wilza Carla, que competiu na categoria luxo feminino com a fantasia “Sinfonia de Inverno”, ela afirmou que “Negro de escola de samba não pode ganhar no Municipal!”. Declaração “justificada” anos mais tarde como dada de “cabeça quente”.

Isabel Valença com a fantasia Rainha Rita, esposa de Chico Rei. Protagonista do enredo do Salgueiro em 1964

A vitória de Isabel no erudito Teatro Municipal marcou um trânsito então inédito na história do carnaval. A edição do Correio da Manhã, de 13 fevereiro de 1964, reafirmava o acontecimento como “uma vitória do samba, que após descer o morro e dominar o asfalto, levou também, de vencida, a elite que frequenta a nossa principal casa de espetáculos

Acadêmicos do Salgueiro, 1965, novamente de Xica da Silva

Em 1965, quando o Salgueiro venceu com “História do carnaval carioca”, Isabel  encarnou Xica da Silva de novo. E não foi precipitação considerá-la um marco na memória da festa apenas dois anos depois, porque o tempo confirmou que ninguém esqueceria aquela mulher. Todos os grandes carnavalescos fariam um dia a sua, no papel de protagonista ou de coadjuvante de um enredo sobre outro assunto.

carnaval de 1966

Em 1966 no enredo sobre os “Amores célebres do Brasil” interpretou a Marquesa de Santos acompanhada de Clóvis Bornay que era o carnavalesco q viria de Dom Pedro I. O problema era que a Marquesa de Santos era amante de D. Pedro e isso geraria impacto no público conservador em anos de ditadura. Isabel não se intimidou, parou de frente para os jurados e olhou fixamente para um deles. Permaneceu estática fitando o julgador. Até que alguém do público puxou um aplauso. No que se seguiram novos aplausos e Isabel permanecia paralisada de frente para o jurado hipnotizado.

Acadêmicos do Salgueiro, 1967

Em 1967 o Salgueiro trouxe o enredo “História da liberdade no Brasil”, um carnaval vigiado desde os ensaios pelos órgãos de segurança. A agremiação da Tijuca ficou em terceiro lugar, mas Isabel mais uma vez deixou sua marca, vestida de Princesa Isabel numa fantasia em que o dourado contrastava com o vermelho e o branco da escola, faiscando com seus vidrilhos e pedrarias.

Acadêmicos do Salgueiro, 1968

No ano seguinte, ela foi Ana Jacinta de São José, no enredo “Dona Beija”, a feiticeira de Araxá, desenvolvido por Fernando Pamplona, com novo festival de elogios à sua performance. No final de 1968, se especulava que Natal levaria a Portela para desfilar em São Paulo, inconformado com os julgamentos dos últimos carnavais cariocas. Ao mesmo tempo, indiferente à polêmica, o Salgueiro preparava o carnaval de Arlindo Rodrigues “Bahia de Todos os Deuses”, para o desfile de 1969. Enquanto a imprensa repercutia a polêmica junto a outros dirigentes cariocas, que falavam até em suspensão dos desfiles, e confirmava com Paulo Henrique Meinberg, secretário municipal de Turismo de São Paulo, o convite à escola de Osvaldo Cruz, a reportagem flagrava Isabel em sua casa bordando ela própria uma fantasia luxuosa de destaque principal da escola, indiferente à confusão dos cartolas.

Acadêmicos do Salgueiro, 1969

A personagem Xica da Silva marcou tanto que virou filme, novela e passaria outras vezes na avenida. Renato Lage apostou em Xica mais de uma vez. Em 1984, no Império Serrano, ela era um dos destaques no enredo “Foi, malandro é”, interpretada por Zezé Motta. No cinquentenário do Salgueiro, em 2003, o carnavalesco convocou a atriz de novo para o papel.

Zezé Motta como Xica da Silva no longa de Cacá Diegues

Em 1978, na Portela, Rosa Magalhães, em parceria com Lícia Lacerda, lembrou a ex-escrava como um vulto histórico em “Mulher à brasileira”. Paulo Barros criou uma ala inspirado nela no enredo sobre música “Ouvindo tudo o que vejo, vejo tudo o que ouço”, da Tijuca, em 2006, referência ao sucesso de Jorge Benjor. Em 2020 a cantora Jojo trouxe uma versão mais ousada em desfile pela Beija Flor.

O próprio Arlindo Rodrigues matou a saudade de sua criação em 1983, na Imperatriz Leopoldinense. Imaginou “A visita do rei da Costa do Marfim a Xica da Silva em Diamantina”, reunindo a estética africana com a pretensão europeia da ex-escrava. A personagem foi vivida por Lena Drummond, primeira dama da verde e branca de Ramos. Isabel não gostou, se sentiu traída por Arlindo e disparou na época “Ele sabe quem é a Xica”.

Isabel Valença

Em três décadas como Destaque absoluto no Salgueiro, Isabel Valença foi Rainha Rita da Vila Rica em 1964, ela foi Marquesa de Santos,em 1966, Princesa Isabel em 1967, Tia Ciata em 1970, Ana Paz, a amante de Mauricio de Nassau em 1971, Rainha de França 1974, Moça Branca (Cachaça),no carnaval de 1977, fantasia que lhe valeu o premio de Estandarte de Ouro de Destaque Feminino.

Em 1987, Isabel veio no Abre Alas e desta vez não existia personagem, Na abertura do desfile com o enredo “E porque não?” ela veio representando ela mesmo.

Em 1990 Isabel voltou a vestir-se de Rainha de França, no enredo “Sou Amigo do Rei“, de Rosa Magalhães. No dia 25 de Agosto daquele mesmo ano, Isabel Valença viria a falecer vítima de problemas circulatórios.

O tamanho do legado deixado por Isabel é incalculável. Seu sucesso na avenida, seus prêmios e vitórias, se estendem a todo mundo do samba. Foi através dela que pela primeira vez o “carnaval dos pretos” entrava em salões nobres e uma mulher negra estampava capas dos mais importantes veículos.

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