Os deuses do carnaval realmente foram muito gentis comigo, um amante do carnaval, que pela primeira vez pisou na Marquês de Sapucaí no ano de 1999 para assistir aos desfiles das escolas de samba.
Já no grupo de acesso daquele ano, no sábado de carnaval, fui brindado com um desfile arrebatador da Unidos da Tijuca, que havia caído no carnaval anterior, e que para voltar à elite do carnaval carioca trouxe para 99 o imbatível “O Dono da Terra” do carnavalesco Oswaldo Jardim, com um samba inesquecível, que ainda hoje ouço muito por ter se tornado um clássico da categoria do samba de enredo.
Foi realmente um cortejo triunfal que ao final da apuração das notas deu à escola todas as notas dez possíveis de serem alcançadas, alçando a Tijuca de novo para o grupo especial das escolas de samba cariocas.
Só por este desfile da Tijuca já valia muito aquele primeiro carnaval no Rio de Janeiro, mas algo ainda muito arrebatador estava para acontecer durante o desfile das escolas do grupo especial para minha felicidade.
Passada a noite de desfiles do grupo de acesso, chegava a hora de ver ao vivo as grandes da Marquês de Sapucaí. O grupo especial eu assisti na arquibancada do setor dez da avenida e desse lugar, pela existência dos camarotes na época, só se conseguia observar a queima de fogos no alto, sem se ver a fluência do desfile na pista desde a entrada da mesma no sambódromo. Iniciava-se a ter a visão do desfile quando a comissão de frente já estava praticamente na altura do recuo da bateria.
Claro que a minha grande expectativa era ver a Beija Flor de Nilópolis, minha escola do coração, que naquele ano trouxe para a Sapucaí como tema a cidade de Araxá/MG. Foi de fato um desfile imponente, luxuoso e digno das tradições nilopolitanas, um momento que vou para sempre guardar na memória como único.
Mas foi já na madrugada da terça-feira de carnaval que algo imbatível foi apresentado na pista de desfiles da Marquês de Sapucaí, pela Estação Primeira de Mangueira, campeã do ano anterior e que queria em 1999 conquistar o tão sonhado bicampeonato do carnaval carioca. Com o tema “O Século do Samba”, de Alexandre Louzada, a intenção da tradicional verde e rosa era falar e homenagear o samba, que completava 100 anos em 1999.
Na comissão de frente mangueirense as quatorze figuras de personalidades do mundo do samba que já haviam falecido, mas foi como se tivessem regressado à vida durante o tempo de desfile da escola. Cartola, Pixinguinha, Clementina de Jesus, Tia Ciata, Clara Nunes, Mestre Fuleiro, Noel Rosa, Sinhô, Donga, Nelson Cavaquinho, Natal, Ismael Silva, Carmen Miranda e Candeia baixaram na Sapucaí e trouxeram consigo uma aura de emoção poucas vezes vista e com tanta intensidade, levando muitos às lágrimas.
A criação dessa comissão de frente foi de Carlinhos de Jesus, que havia assumido o quesito na verde e rosa para o carnaval de 1998, com a luxuosa participação do figurinista Luiz de Freitas e o maquiador Vavá Torres, o qual passou inclusive uma temporada em Nova York para aprimorar-se na técnica necessária para a criação das máscaras indispensáveis para caracterização dos personagens no grupo representados. As publicações da época nos contam que está comissão de frente teria custado o valor de R$56.000,00 (cinqüenta e seis mil reais).
A Estação Primeira de Mangueira recebeu todos os prêmios possíveis na época com aquela comissão de frente, entre estes o Estandarte de ouro oferecido pelo jornal O Globo.
“Considero essa apresentação o maior momento do carnaval brasileiro de todos os tempos. A Comissão de Frente da Mangueira de 1999 é a maior expressão carnavalesca que já passou pela avenida. Dali pra trás, o que viesse seria um marasmo. O Carnaval de 1999 parava ali. Nem precisava de mais nada…” – Alessandro Bertea Mendes (Estação Primeira.Org)
Carlinhos de Jesus, além da maquiagem extremamente detalhista e realista, não abriu mão de utilizar objetos originais dos homenageados, como os óculos de Cartola e a piteira de Donga.
Aos jornais da época Carlinhos de Jesus revelou que a espiritualidade foi elemento importante no trabalho de elaboração da comissão, já que o coreógrafo chegou a consultar com um pai de santo para solicitar autorização para reviver os sambistas já mortos já que estava lidando com eguns (como são chamadas nas religiões de matriz africana as almas de pessoas já falecidas), razão pela qual havia a necessidade de alguns preparos.
A coreografia ainda continha pormenores pessoais de alguns sambistas. A desatenta Clementina de Jesus, como revelaram seus familiares, por exemplo, era propositalmente abandonada para trás momentaneamente. Carlinhos tinha que buscá-la, estupefata com a passarela do samba, no momento da apresentação aos jurados.
Quem assistiu aquele desfile ao vivo foi um privilegiado, que não se repetiu no desfile das campeãs, já que mesmo que a Mangueira estivesse preparada para lutar pelo bicampeonato, detalhes na evolução, alegorias e adereços e porta bandeira e mestre sala acabaram tirando pontos da escola, tendo esta ficado apenas com a sétima colocação.
Pior do que não ter conquistado o bicampeonato naquele carnaval, para os torcedores da verde e rosa e para os amantes do carnaval foi não poder ter revisto aquela apresentação arrebatadora da comissão de frente inesquecível da agremiação no desfile das campeãs.
Mas Carlinhos de Jesus tinha uma explicação para essa apresentação da comissão ter sido única, “era para acontecer uma vez só. Eles (sambistas) não quiseram voltar, estão lá no canto deles. Tenho esperança de que um dia eles digam para mim: ‘Carlinhos, queremos visitar a Sapucaí de novo’. Não descarto a possibilidade dessa comissão voltar com os mesmos personagens”.
por Sidnei Louro Jorge Júnior