Passados 101 anos, estamos novamente nos aproximando da folia momesca apreensivos com um vírus letal que se espalha pelo mundo. Naquela vez o inimigo era a Gripe Espanhola. Três meses antes, no dia 11 de novembro de 1919, tinha sido encerrada a Primeira Guerra Mundial, conflito que teve oito milhões de mortos. E na época uma gripe matava milhões no mundo, todos os grande eventos foram cancelados. Com tantas mortes, uma pergunta pairava no ar. Quando vamos voltar a normalidade? É assustador imaginar que um dia isso aconteceu nas ruas do Brasil e principalmente no Rio.
O Rio de Janeiro era a capital da jovem República e uma cidade com mais de um milhão de habitantes – a maior da América Latina, com o dobro da população de São Paulo, e também uma das maiores do mundo. Foi no Rio que a pandemia mostrou sua face mais terrível no país.
Quando chegou por aqui ainda dava para controlar os enterros. Depois foi faltando até madeira para fazer caixão. E os corpos? No auge da crise, a população colocava os corpos no meio da rua. Passava a carroça do lixo e levava embora. Não tinha número suficiente de coveiros e a solução foi pegar presos. Abriram a cadeia e muitos cadáveres tiveram seus dedos cortados para o roubo de anéis, cabeças degoladas para tirar um cordão. Um cenário de horror aos dias de hoje.
Não havia espaço para rituais religiosos. Muitas pessoas foram enterradas em cova rasa, sem identificação. Muitos foram empilhados e incinerados. Nem o presidente recém eleito escapou, Rodrigues Alves faleceu em janeiro de 1919, não assumindo o posto.
Os médicos não sabiam como tratar o mal e receitaram quinino, caldo de galinha e limão. Não que o Brasil não estivesse avisado. A gripe estava dizimando na Europa e não existem registros ou conhecimento de quantos teriam morrido no Oriente, como por exemplo na China.
Frente ao desconhecimento ou ineficácia das medidas terapêuticas que pudessem impedir o contágio ou curar os doentes, as autoridades públicas restringiram-se a orientar a população a evitar os lugares de aglomeração. Nesse momento, a cidade transformou-se num caos generalizado.
Embora os políticos e administradores do Rio de Janeiro não acreditassem, ou não quisessem aceitar, a epidemia foi dominando a cidade. Em outubro, a imprensa noticiou a existência de doentes em locais de grande aglomeração: quartéis, fábricas e escolas.
Por volta da segunda semana era enorme a quantidade de casos fatais da doença. Nesse momento, o número de pessoas atingidas havia crescido, deixando a população apavorada. A violência da gripe transformava a cidade, paralisando vários setores das atividades urbanas. Frente à inércia dos governantes em relação à epidemia e ao desespero da população, restava aos habitantes organizar manifestações religiosas implorando a São Sebastião que cuidasse da peste que ameaçava a cidade.
Em Outubro de 2018 a desorganização das atividades comerciais provocou uma grave crise de abastecimento. Se nas áreas próximas do centro urbano havia dificuldade em conseguir alimentos, nas áreas suburbanas eles eram extremamente escassos. Para amenizar a situação, o governo passou a distribuir caldo de galinha e pão para a população. O que foi de forma inoperante, causando saques e arruaça geral nas cidade.
Em novembro, assim como surgira, a ‘Espanhola’ foi embora, matando no mundo, entre 50 e 100 milhões de pessoas – os números não são precisos por conta da época. No Brasil morreram 35.000 pessoas, 12.700 delas no Rio de Janeiro. Estima-se que a Gripe Espanhola foi a pandemia mais letal da História, tendo matado 5% da população do planeta – cerca de 75.100 milhões de pessoas.
Cautelosas, as pessoas começaram a sair de casa e retornaram ao cotidiano. A partir desse momento, desencadeou-se um conjunto de atitudes e sentimentos da população em relação à epidemia, marcados pelo contexto de medo e alegria. Em jornais da época músicas brincavam com os fatos da dolorosa epidemia, além de várias notas sobre a criação de blocos carnavalescos e convites para bailes fazendo alusão à gripe. Parece que os cariocas não se intimidaram e foi documentado em artigos que a alegria era incomum.
Os memorialistas qualificam o Carnaval de 1919 como um dos mais animados que o Rio de Janeiro teve: bailes, batalhas de confete e incontáveis blocos espalhados pelos bairros. Ao que parece, houve uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Tudo era motivo de alegria e riso. A ‘Espanhola’ atacara também outras cidades, mas o Rio de Janeiro conheceu um fenômeno interessante: o Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe. As revistas ilustradas como O malho, Careta e outras documentam em dezenas de fotografias a folia que animou a cidade.
Às vésperas do Carnaval de 1912, morreu o barão, ministro das Relações Exteriores. Para homenageá-lo, o governo determinou que o Carnaval fosse adiado para abril. Não adiantou. O povo brincou os dois carnavais, cantando a seguinte marchinha: “Com a morte do Barão/ tivemos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o Marechá”. O ‘Marechá’, no caso, era o presidente, marechal Hermes da Fonseca.
Todo o planeta respirava aliviado no começo de 1919. O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era medieval, feudal. A mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera. E depois da pandemia tudo mudou.
Como o pico de casos no Brasil foi no final de 1918, quando o problema foi controlado, já no início do ano seguinte, o Carnaval foi um acontecimento histórico. O Carnaval de 1919 parecia a redenção. O encontro dos vivos. O brinde a carne. O extravasar depois de um contato tão próximo com a finitude. Nas festas de rua ou nas festas de clubes, como no Democráticos, no centro da cidade, a turma bebia e cantava até não poder mais.
Segundo a descrição dos sobreviventes e vítimas da peste e da gripe, o medo e a presença avassaladora da morte levavam à alteração das normas sociais durante as epidemias – até mesmo expondo-se as pessoas aos perigos de um contágio. No entanto, o prazer marcava os momentos que poderiam ser os últimos da vida naquele carnaval.
Os jornais também estavam repletos de anúncios dos mais variados tipos, que deixavam claro que a economia começava a se movimentar após os meses de pico da doença. Lojas ofereciam fantasias de carnaval e moradores das casas e apartamentos com vista privilegiada, em ruas por onde os blocos passariam, alugavam suas janelas, transformadas em camarotes improvisados.
Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. A morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas. Foi a verdadeira “Festa da carne”!
Já em janeiro, a Cervejaria Brahma pedia que os fregueses mandassem seus pedidos de carnaval com antecedência, dizendo que só assim conseguiria dar conta da demanda. Outra propaganda que tomava conta das páginas dos jornais era a do lança-perfume, spray inebriante que tinha sido introduzido no país no carnaval de 1904 e que permaneceu, por décadas, como um símbolo da folia. O lança-perfume sobreviveu até os anos 1960, quando foi proibido pelo governo de Jânio Quadros. Os carros, que naquela década começavam a tomar conta das ruas brasileiras, eram usados nos desfiles – existiam cerca de cinco mil veículos na capital federal.
Nelson Rodrigues, que tinha acabado de fazer seis anos quando o vírus chegou ao Rio, guardou memórias terríveis da epidemia. Nos anos 1960, ele escreveu duas crônicas sobre o assunto, publicadas no Correio da Manhã e mais tarde incluídas no livro “Memórias: A menina sem estrela”.
“E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados“.
Para o brasileiro, diziam os jornais, o carnaval é a festa que dá força e “liberta da tristeza que passamos o resto do ano”. E, pelo tamanho da tristeza enfrentada em 1918 com a epidemia de Gripe Espanhola, a folia de 1919 tinha mesmo que ser eterna. Anos depois, escritores, jornalistas e compositores descreveriam o carnaval da gripe espanhola como uma festança dos sobreviventes que tinham se vingado, enfim, da morte. E olha que boa parte dos foliões estava careca, literalmente, por conta da doença.
No dia 23 de fevereiro, o último domingo antes da folia de 1919, o jornal A Noite trouxe as “vinhetas da semana” – quatro charges. Numa delas, uma mulher cobria a cabeça com um véu e carregava cabelos na mão direita. A legenda deixava claro quem era a culpada pela calvície coletiva: a gripe espanhola. “Cuidado com ela! “Põe a calva à mostra a toda gente… que tenha cabelo de verdade”, brincava a publicação. Ao lado, o Rei Momo comemorava seus três dias de reinado por ano.
No domingo de carnaval, que naquele ano caiu no dia 2 de março, o jornal Gazeta de Notícias já celebrava o triunfo da festa. “O entusiasmo popular excedeu ontem toda a expectativa”, dizia a capa da publicação. “Toda a cidade se anima, todo o Rio de Janeiro se transfigura. Os moços soltam as risadas, sem temor de convenções ou preconceitos, as moças correm e francamente saracoteam, as crianças aos berros enlouquecem, e os velhos cobram nova alma!. O dinheiro surgiu, apareceu abundante, e corre livremente, por um milagre estrondoso”.
O Correio da Manhã na segunda de carnaval, confirmava o sucesso da festa. “Correu animadíssimo o dia de festejos carnavalescos”, anunciou o jornal. “Foi um domingo cheio, desde a tarde, com toda a cidade vibrando de alegria. Na manchete do segundo dia de folia, a Gazeta de Notícias resgatou uma chamada clássica para os carnavais daquela década: o Rio estava “No Reinado da Loucura”. “Na quarta-feira de cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior carnaval de sua história”, conta o escritor Ruy Castro no livro “Metrópole à Beira-Mar”, lançado no ano passado e que narra a vida no Rio de Janeiro dos anos 1920, com direito a um prólogo impressionante sobre a epidemia de 1918 e a folia de 1919.
O Carnaval de 1919, contra todas as expectativas causadas pelo ano de flagelos que o precedeu, foi apenas um recorde de animação, de luxo, de alegria e de bom gosto.
Outra publicação destacava que Delfim Moreira, então presidente, tinha saído de sua residência de verão para acompanhar a passagem dos blocos carnavalescos pela Avenida Rio Branco, a principal da cidade. Seria o primeiro chefe de estado a ter esse gesto.
Naquele período nasceria o famoso Cordão da Bola Preta que desfilou pela primeira vez naquele carnaval e hoje que se declara “o maior bloco do mundo”. Um dos fundadores foi Álvaro Gomes de Oliveira, conhecido como Caveirinha. Ele ganhou esse apelido por conta de ter emagrecido durante a gripe.
A quarta-feira de cinzas de 1919 foi o dia oficial da ressaca para os foliões e alegria para os catadores de papel. O jornal A Noite visitou as principais casas compradoras de papel velho e encontrou os depósitos cheios de serpentinas, “da porta ao teto”. Um proprietário só lamentava não ter mais espaço para guardar o produto. “Houve, não há dúvida, enorme gasto de papel, na forma de serpentinas, neste carnaval de 1919”, concluiu a reportagem, estimando que 40 toneladas tinham sido recolhidas das ruas do Rio após a festa, deixadas pelas tradicionais batalhas de serpentinas e confetes.
Aquele tinha sido um carnaval sem precedentes também para padrões comportamentais. E a polícia registrou recorde nos atendimentos, de registros de crianças desaparecidas a queixas de assédio sexual e crimes violentos, inclusive estupros.
Mais de 100 anos se passaram desde o carnaval da gripe espanhola, em 1919. De lá pra cá, a folia seguiu o tamanho crescente do Rio e hoje é considerado o maior do mundo. Mas aquele carnaval ainda é lembrado como o maior que a cidade tinha organizado até então, deixando marcas profundas na literatura, na música, na cultura popular e nas pessoas.
De certa forma, a folia de 1919 foi o abre alas para a década de 1920, libertária e moderna em dezenas de sentidos. Nelson Rodrigues chegou a dizer que a festa tinha sido “sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados” deixados pela epidemia.
Para comemorar simbolicamente a vitória contra a doença, a gripe espanhola foi logo cantada nas ruas, tornando-se tema de marchinhas carnavalescas, como: “Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria./ Quem não morreu da espanhola,/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar…”.
Podemos esperar por uma festa igualmente intensa já no próximo carnaval? Não sabemos. Enquanto a hora não chega, a Viradouro já anunciou que o tema de seu próximo carnaval vai ser uma releitura da folia de 1919, com o enredo “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. A mesma marchinha que fez história há um século.
A grande campeã do carnaval carioca inspirada no atual momento vai tomar como ponto de partida para estruturar seu desfile o carnaval todo ocorrido na época. O enredo será desenvolvido por Marcus Ferreira e Tarcisio Zanon.
E como será o carnaval de 2021? Também não sabemos. O fato é que após tudo passar, assim como em 1919 seremos diferentes no comportamento, nas relações e principalmente na forma de brincar carnaval.
Por Waldir Tavares