“Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia” – Um campeonato não alcançado oficialmente, mas que para o povo foi um desfile vitorioso

O carnaval de 1988 deixou como legado um total de 18 escolas de samba para desfilar no grupo especial no ano seguinte, já que as dezesseis escolas de samba de 88 permaneceram sem rebaixamento e as duas primeiras colocadas do acesso tiveram seu acesso garantido, por força de regulamento, sendo esse número de agremiações que desfilaram num único ano um recorde que ficou para a história do carnaval do Rio de Janeiro, tratando-se de grupo especial já no sambódromo da Marquês de Sapucaí.

A preparação dos desfiles das agremiações para o carnaval de 1989, já nas notícias durante o ano, indicavam que algo de diferente estava para ser apresentado na Sapucaí, mas os apaixonados pelo carnaval não conseguiam ter a exata noção do que iriam assistir na pista de desfiles, já que naquela época os preparativos eram mantidos em maior segredo e poucos sabiam exatamente o que cada escola iria de fato apresentar, situação muito diferente da atualidade, especialmente depois da mudança das agremiações do grupo especial para a Cidade do Samba, localizada na zona portuária do Rio de Janeiro.

Estávamos comemorando naquele ano o centenário da proclamação da república no Brasil e foi este o pano de fundo para o desfile campeão da Imperatriz Leopoldinense, que com “Liberdade! Liberdade! Abre as Asas Sobre Nós”, desenvolvido pelo carnavalesco Max Lopes, acabou com o campeonato daquele carnaval com um samba de enredo ainda muito cantado até hoje.

A Beija Flor de Nilópolis, já conhecida pelo luxo nos seus desfiles, preparou para aquele ano o emblemático e inesquecível “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, enredo idealizado pelo genial Joãosinho Trinta, com figurinos de Viriato Ferreira, que marcou a Marquês de Sapucaí como um dos desfiles mais marcantes e impactantes da história do carnaval brasileiro.

Desde aquela época, os estudiosos do carnaval afirmam que teria o carnavalesco se inspirado numa mendiga que viu na capital inglesa no ano de 1988, tendo ficado o carnavalesco admirado pela sua elegância.

Um fato que poderia ter sido um grande complicador no carnaval da Beija Flor, aconteceu quando às vésperas do carnaval, a Arquidiocese do Rio de Janeiro obteve uma ordem judicial proibindo a apresentação do Cristo mendigo, preparado para passar pela avenida no abre alas da escola. Mas a realidade é que o carnavalesco não se deu por vencido e como medida excepcional cobriu a alegoria com um plástico preto e acrescentou uma faixa com a emblemática frase “mesmo proibido, olhai por nós”.

A idéia original de concepção para o abre alas da escola, o mesmo retrataria, a princípio, uma cópia dos Arcos da Lapa cercados por uma enorme favela. Laíla ainda hoje reivindica a idéia do Cristo Mendigo como sua, dentre outras sugestões que foram anunciadas por Joãosinho Trinta como suas.

A alegoria envolta no plástico preto, com a faixa gigante branca e a inscrição-protesto, transformou-se na imagem mais conhecida do carnaval contemporâneo segundo a crítica carnavalesca.

O acertado é que grande parte do público carnavalesco aderiu à posição da escola diante da briga com a Cúria do Rio de Janeiro. Essa situação observada criou uma aura em torno da proposta deste desfile da escola nilopolitana, que em sua proposta de desfile trouxe um enredo que discorria sobre o lixo do Brasil e levou para a pista de desfiles fantasias despedaçadas, restos de carnavais passados e objetos, cenográficos ou não, jogados fora, já descartados inclusive e que foram reaproveitados, situações estas muito diferentes daquilo que a escola estava acostumada a apresentar em seus carnavais pretéritos.

Os componentes da escola estavam ainda mais determinados a silenciar os críticos, já que cantaram e dançaram com uma garra espantosa. Expor a sujeira foi como um grito de libertação, daqueles que passam por uma variedade de problemas durante o ano e no carnaval aproveitam o período para descarregar sua insatisfação e colocar seus sonhos para fora.

A segunda alegoria da beija Flor, chamada “Convite”, uma releitura foliã dos miseráveis de Victor Hugo, com um chamado imenso: “Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxos… Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso Bal Masqué”, também entrou para a história como das imagens mais lembradas do desfile daquele ano.

Existem relatos de quem privava do convívio com Joãosinho Trinta na época de Ratos e Urubus, de que o carnavalesco encheu mesmo a escola de mendigos, que não tinham ligação com a agremiação, gente de fato recolhida na rua, para dar mais realismo ao que queria mostrar o carnavalesco de fato com aquele enredo.

Mas o certo é que a partir de Ratos e Urubus, a originalidade não desapareceu mais da cena carnavalesca decididamente.

A imprensa da época chegou a noticiar que o desfile de 89 da Beija Flor foi como “um delírio coletivo, único, que hipnotizou os milhares de corações foliões que lotavam a Sapucaí, naquela madrugada abafada, no meio de fevereiro de 1989, e, de tão intenso, contagiou até quem estava ali para avaliar o que via.”

O mestre Fernando Pamplona, naquele ano era comentarista da extinta TV Manchete, e diante do desfile planejado por Joãosinho Trinta, ficou extasiado com tudo aquilo que passou diante de seus olhos, proclamando ser aquele cortejo o maior desfile de todos os tempos.

O samba de enredo foi composto por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar, e interpretado por Neguinho da Beija Flor.

Os componentes, evidentemente, empolgados com a catarse que acontecia, cantaram o samba por toda a pista com muita vontade, e o público acompanhava. Samba que, diga-se de passagem, não era tão poético como os de Imperatriz e Salgueiro, por exemplo, mas deu conta do recado com valentia.

Outro ponto marcante daquele desfile foi a apresentação simultânea de oito casais de mestre-sala e porta-bandeira, que no fim se reuniam numa roda e saudavam o público presente na Sapucaí.

Joãozinho Trinta e os demais integrantes da diretoria da Beija Flor desfilaram fantasiados de garis da Comlurb e o carnavalesco se divertiu com uma mangueira de água, imagem esta que correu o mundo através da imprensa.

Em seguida do choque ocasionado pela Beija-Flor, o Império Serrano encerrou o carnaval de 89 com um admirável tributo ao escritor baiano Jorge Amado.

No final da apuração das notas dos jurados, Beija-Flor e Imperatriz Leopoldinense ficaram em situação de empate, cada escola com 210 pontos, mas como a escola de Nilópolis havia descartado maior número de notas nove (notas estas recebidas nos quesitos samba-enredo, evolução e conjunto), a Imperatriz Leopoldinense foi proclamada foi a campeã daquele carnaval.

Ratos e Urubus também marcou como o último desfile de Pinah como destaque da escola que após 89 seguiu desfilando pela agremiação, mas fora dos holofotes, até que em 2019 ressurgiu no chão da escola exuberante em frente a ala que vinha lhe homenageando.

Para o desfile do sábado seguinte, quando acontece a festa das campeãs, o número de desfilantes da Deusa da Passarela teve o incremento de três bonecos de “Judas” em representação dos jurados que não deram dez à escola nilopolitana.

Voltando no desfile das campeãs daquele ano, quando o carro abre-alas chegou mais ou menos no meio da pista, alguns integrantes da escola decidiram tirar o plástico negro que cobria o Cristo Mendigo, atitude esta que levou o público que estava assistindo ao desfile ao completo êxtase, mas logo diretores de alas e harmonia recolocaram o que foi possível do plástico rasgado.

Completando o pódio carnavalesco em 1989, a terceira colocação ficou com a União da Ilha do Governador que havia desfilado de forma magnífica, como há anos não se via.

Na ponta debaixo da tabela, caíram para o grupo inferior naquele ano Tradição, Unidos da Ponte, Arranco do Engenho de Dentro e Unidos do Jacarezinho.

por Sidnei Louro Jorge Júnior

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